Só peço que não lhe pisem a campa.
E nada de flores cor-de-rosa, por favor.
Eis o derradeiro papel. “Compra” trata da última promoção: bebés a 5 euros. É a hiperbolização total do frenesim consumista, numa altura em que a crise começava a propagar-se. Há sexo, pois claro, e espaço para apresentar o fantástico Hans, de (presume-se) Dresden. Humanos como objectos, objectos mais valiosos que humanos, a lei da oferta e da procura é uma coisa tramada e Adam Smith sabia do que falava quando se referia à Mão Invisível.
O que isto tem a ver com “Compra”? Nada. Fica bem lembrar o Adam Smith, só isso.
“Compra” foi finalizada com esforço. Iniciada em Março, entrou no congelador a partir da segunda tira da segunda parte e só foi retomada passado três meses. Há cerca de um ano, portanto. Demorou-me tempo até encontrar espírito e iniciativa para conseguir fechar a “história” em cerca de 15 quadradinhos. Foi-me difícil improvisar como dantes e assumo isso frontalmente. Mesmo assim, não está má de todo. Mas isto sou eu a falar.
Em 2007, quebrando o longo jejum de quadradinhos, surge “Discrição”. Uma “história” sobre um tipo apalhaçado que mantém uma relação muito particular com as salsichas. Um sujeito que não consegue deixar de dar nas vistas. Detectives privados, senhoras austeras, criadas mongolóides, sexo fortuito, humanos em produtos alimentares, viagem ao Tibete e surrealismo pictórico no final. Assim de repente é isto.
Ao contrário do que era habitual, utilizou-se uma esferográfica preta. E o título aparece bem definido no topo da página. O estilo como um todo, porém, não revela grandes alterações. Aliás, avaliando sob este prisma, “Discrição” podia ter acontecido mais cedo. Mas só apareceu bem depois do resto do pelotão. Um novo hiato lhe sucederia.
Com “Barra de Ferro” chegou o fim das minhas edições regulares. A paragem terminal de mais um ciclo é uma “história” repleta de absurdo e morte por dá-cá-aquela-palha, num argumento que merecia um papel menos rasgado. Um bom esforço para realçar a incompetência dos gestores e o seguidismo cego das massas, a meu ver. Tem um narrador que nos acompanha quase até ao fim, o que também não é muito comum, já que preferi sempre deixar as personagens falar e não me socorrer de narradores para explicar o contexto. Aliás, o contexto é a interpretação que cada um queira fazer; eu sentir-me-ia muito gratificado se existissem várias explicações para certa “história” para além da minha, que é só mais uma e não necessariamente mais válida apenas por eu ter sido o autor. Porém, aqui tive mesmo que recorrer ao narrador.
“Barra de Ferro” não estava destinada a ser a última “história”. Ao contrário do que acontecera no passado, não planeei nenhuma retirada, as coisas apenas acabaram por acontecer dessa forma. As pessoas vão crescendo, o ambiente vai mudando, certas coisas deixam de fazer tanto sentido e outras começam a ganhar preponderância. Ao fim de sete anos praticamente sem pausas superiores a meio ano é natural que o ritmo de produção destas “histórias” começasse a ressentir-se.
Daqui em diante, as aparições seriam esporádicas, como se destinassem apenas a matar o bichinho que aperta de vez em quando – ou como aquela peladinha ocasional que o jogador de futebol retirado joga pelas velhas guardas de tempos em tempos.
Em 2001 já começava a haver muita Internet, muita televisão por cabo, muita gente a aparecer com ideias frescas e boas e percebi que iria aparecer algo que substituísse o grau de comédia absurda das minhas “histórias”. Bem, não exactamente com este formato, mas depois surgiu muita gente com muito talento, igualmente inspirada pelos Simpsons, Herman José, Monty Python e música rock/pop, entre outros, e, como não podia deixar de ser, com muito mais poder de promoção. Eu próprio compreendi que tinha duas opções no que concernia à minha forma de expressão: apostar na especialização e em repetir-me ad eternum, o que exigiria uma dedicação que não me parecia apetecível, ou perceber que o momento já tinha passado e que havia que avançar para outras bandas. Para o bem ou para o mal, escolhi a última.
Demorou mais de ano para que “Barra de Ferro” tivesse uma sucessora. A partir de “Barra de Ferro” nunca mais tive a certeza de que iria haver uma sucessora; seria uma questão de existir ou não uma vontade ocasional polvilhada com um certo saudosismo. Em cerca de sete anos ocorreriam quatro momentos desses.
Um programa de TV sobre uma personalidade tão prestigiosa quanto medíocre. O grande elefante branco da obra pública. Governo e Oposição juntos na prisão. José Eduardo quando ainda não havia Luís Freitas Lobo. E um tipo sem pistas, servindo de posto de informações, a ser punido pelo seu desconhecimento. Foi parar junto do Governo e da Oposição por causa do ilustre engenheiro. Ou seja, à cadeia. Isto é “Ponte Inútil”.
O título diz tudo, embora também pudesse ser "Não À Lógica". Talvez a minha “história” com maior grau de absurdo, ainda que preserve uma estrutura dividida entre dois perfeitos malucos que passam o testemunho a um indivíduo de aspecto estranho para depois voltar ao mesmo par de doidos. Este papel foi feito a seguir a um exame mentalmente exigente e sentia-me realmente confuso e a precisar de desabafar. Saiu isto.
Esta sim, é a última aparição de Zé Bastos. Uma despedida épica, traduzida numa trilogia. Se tomada pelo seu todo, esta é a maior “história” de todas as que fiz, alongando-se por três (ou seis) papéis completos.
Algumas particularidades: o regresso aos quadradinhos, imediatamente depois de uma primeira trégua; um título em espanhol, inspirado no videoclip da Madonna que tinha visto antes de nomear a “história”, “La Isla Bonita”; aparece uma personagem feminina que partilha o protagonismo com Zé Bastos, com um nome estranhamente vulgar – Ana Esteves (certamente que existirão muitas…); o primeiro capítulo foi realizado a lápis (a única vez de que há registo); e todos os capítulos, sem excepção, foram realizados durante algumas aulas que tive na altura: durante um ou dois dias de aulas não fiz mais nada. E também não devo ter perdido muito. O cabeçalho do segundo capítulo foi directamente retirado do que estava a ser escrito pela professora no quadro da aula de matemática, por exemplo.
O primeiro capítulo introduz Zé Bastos como um náufrago cuja sorte mudara em pouco tempo e a estranha personagem que é Ana; no segundo capítulo Ana continua a testar os limites da paciência de Zé Bastos, confuso com a calma enervante da sua aparente salvadora, existindo algumas intromissões pelo meio (uma das quais dedicada ao telemóvel); e o terceiro capítulo é a natural precipitação do enredo, ainda que as coisas não acabem totalmente bem para Zé Bastos, que nunca parece capaz de compreender a estranha devoção passiva de Ana. "Solo En La Isla" revela uma faceta sentimental pouco usual no cômputo geral destas "histórias" - talvez por isso, notei que algum público feminino achou "querido" e "fofinho" (as expressões não são minhas) o argumento. Em linhas gerais, claro.
Zé Bastos, um tipo com hormonas como toda a gente, finaliza o seu percurso como uma vítima das circunstâncias, mais uma vez, indo da euforia ao desespero num só quadradinho. Dado que o estilo que percorre grande parte da “história” também é algo reminiscente dos primeiros tempos, tempos em que Zé Bastos ainda não desenvolvera tanto o seu gosto pelo absurdo, temos aqui uma síntese adequada da sua vida. Escusado será dizer que argumentos para seis páginas significavam o cabo dos trabalhos e nem mesmo a monotonia das aulas me incentivava a iniciar projectos desta envergadura. Portanto, eis uma despedida única para uma personagem única.